Influenza
Para quem se lembra, o milénio começou com a anunciação de uma catástrofe. Virtual, é certo, mas catástrofe à mesma. Um vírus informático ameaçava propagar-se de tal modo, que todos os sistemas de apoio à vida – dos transportes aos fluxos cambiais de Wall Street –, entrariam em colapso absoluto. No entanto, o único acontecimento registável, na passagem do ano, foi o falhanço no lançamento do fogo-de-artifício, no Porto. De qualquer maneira, a transição para o ano 2000 daria o tom para a meia dúzia de anos já percorridos. De ameaça em ameaça, vivemos em constante estado de alerta.
No rol das ameaças globais, conta-se a ansiedade, por causa das armas de destruição maciça do ex-ditador de Bagdad e a mitose celular da Al-Qaeda. A estes perigos, há que juntar o H5N1, a gripe, de aves que subversivamente não conhecem Shengen, nem tão pouco se deixam intimidar com muros de salvaguarda da paz ou de boa vizinhança.
Em termos domésticos, tivemos também os nossos sobressaltos. Desde o «apagão», provocado, se bem me lembro, por uma cegonha (uma ave, pois claro!), até ao «arrastão» de Carcavelos. Mas nenhum daqueles apocalipses se compara, na capacidade de mobilização que provocou no país – da administração pública à mais singela colectividade de um povoado continental ou insular –, ao «deficit» das contas públicas. De maneira que, nos dias que correm, não nos sobra inquietação, nem temor.
O futuro era dantes o lugar onde todos os sonhos eram possíveis. O progresso tecnológico e o evolutivo melhoramento das condições de vida prometiam, se não «amanhãs que cantam», pelo menos a contenção da doença, da miséria e da ignorância. No avanço da Ciência depositaram-se todas as esperanças. E, pelo menos ela, tem dado bem conta do recado. Para as sociedades pós-industriais, o medo deixou de ter objecto imediato a que se reportar. A fome, as doenças infecciosas, a mortalidade infantil e a ignorância supersticiosa, deram lugar à abundância, ao controle higiénico-sanitário e à educação como direito universal. Entretanto, os perigos diferiram-se no tempo. A mesma Ciência que educa para o optimismo, avisa-nos agora que, daqui para diante, se os procedimentos individuais e colectivos não sofrerem uma transformação radical, todos os perigos são esperáveis.
As catástrofes – tecnológicas, demográficas e ecológicas – são antecipadamente anunciadas, com um profissionalismo mediático-tecnológico incomparavelmente mais sofisticado que a parafernália multimédia da astrologia que as televisões nos trazem. Mesmo o boletim meteorológico, que era relegado para fora do espaço noticioso (não era notícia, portanto), merece agora honras de abertura dos telejornais. Não é que a previsão geofísica tenha desaparecido como programa. O boletim meteorológico continua com o seu espaço próprio e prudentemente científico. Mas agora é bem outra coisa. Os 10 ou 15 minutos de conjecturas geofísicas para o dia de amanhã, ou para daqui a 15 dias, que os telejornais integram, inserem-se na mesma lógica de prenúncio de desgraça. A catástrofe perdeu a sua natureza imprevista e humanamente trágica. Agora, aguardamo-la ansiosamente, com os olhos colados à televisão, ou numa sala de cinema perto de nós. Para glosar um spot publicitário que pegou de estaca: o futuro já não é o que era.
De tudo isto, o discurso político soube tirar as devidas lições. Se nada for feito, a Segurança Social, no prazo de 10, talvez 20, na melhor das hipóteses, 25 anos, entrará em bancarrota. A viabilidade do Estado e, por metonímia, a viabilidade do país, está seriamente ameaçada, se as contas públicas não forem controladas e se o trabalho não for racionalizado, isto é, contido nos seus custos.
São conhecidas as consequências da influenza. Nas pandemias e no inflar nos espíritos da fluência climatórica (e do seu contraponto: a nefasta interferência humana no clima), anuncia-se a libertação dos demónios, que o Inferno reúne em si. À letra: um pandemónio. A amplificação do terror pede argumentos à altura: ad terrorem. Isto é: dado um caso, seguir-se-á, inevitavelmente, consequências de tal modo terríficas, que todo o pensamento fica tolhido. A demissão crítica funciona, em primeiro lugar, sobre a ausência de averiguação objectiva e rigorosa da existência do «caso». Se a incontinência do deficit ameaça a sobrevivência do Estado Social e põe em risco a viabilidade do país, para que o deficit seja anulado, o Estado tem que se livrar das suas funções sociais. Ora, o salto argumentativo, a ser efectivamente transposto para a realidade, comporta riscos de convulsão social.
Na fidelidade aos princípios pragmáticos (que «desideologicamente» suportam tal intenção), prediz-se, desde já, que a Diplomacia, as Polícias, as Forças Armadas e a Justiça continuarão dentro das funções do Estado. Que o mesmo é dizer: na política externa, a manutenção dos «fins humanitários»; na política doméstica, a manutenção da ordem pública.
Para grandes males, grandes remédios.
in «Crónicas», Incomunidade Edições, Lisboa, 2008, p. 41 e sgs.
Para quem se lembra, o milénio começou com a anunciação de uma catástrofe. Virtual, é certo, mas catástrofe à mesma. Um vírus informático ameaçava propagar-se de tal modo, que todos os sistemas de apoio à vida – dos transportes aos fluxos cambiais de Wall Street –, entrariam em colapso absoluto. No entanto, o único acontecimento registável, na passagem do ano, foi o falhanço no lançamento do fogo-de-artifício, no Porto. De qualquer maneira, a transição para o ano 2000 daria o tom para a meia dúzia de anos já percorridos. De ameaça em ameaça, vivemos em constante estado de alerta.
No rol das ameaças globais, conta-se a ansiedade, por causa das armas de destruição maciça do ex-ditador de Bagdad e a mitose celular da Al-Qaeda. A estes perigos, há que juntar o H5N1, a gripe, de aves que subversivamente não conhecem Shengen, nem tão pouco se deixam intimidar com muros de salvaguarda da paz ou de boa vizinhança.
Em termos domésticos, tivemos também os nossos sobressaltos. Desde o «apagão», provocado, se bem me lembro, por uma cegonha (uma ave, pois claro!), até ao «arrastão» de Carcavelos. Mas nenhum daqueles apocalipses se compara, na capacidade de mobilização que provocou no país – da administração pública à mais singela colectividade de um povoado continental ou insular –, ao «deficit» das contas públicas. De maneira que, nos dias que correm, não nos sobra inquietação, nem temor.
O futuro era dantes o lugar onde todos os sonhos eram possíveis. O progresso tecnológico e o evolutivo melhoramento das condições de vida prometiam, se não «amanhãs que cantam», pelo menos a contenção da doença, da miséria e da ignorância. No avanço da Ciência depositaram-se todas as esperanças. E, pelo menos ela, tem dado bem conta do recado. Para as sociedades pós-industriais, o medo deixou de ter objecto imediato a que se reportar. A fome, as doenças infecciosas, a mortalidade infantil e a ignorância supersticiosa, deram lugar à abundância, ao controle higiénico-sanitário e à educação como direito universal. Entretanto, os perigos diferiram-se no tempo. A mesma Ciência que educa para o optimismo, avisa-nos agora que, daqui para diante, se os procedimentos individuais e colectivos não sofrerem uma transformação radical, todos os perigos são esperáveis.
As catástrofes – tecnológicas, demográficas e ecológicas – são antecipadamente anunciadas, com um profissionalismo mediático-tecnológico incomparavelmente mais sofisticado que a parafernália multimédia da astrologia que as televisões nos trazem. Mesmo o boletim meteorológico, que era relegado para fora do espaço noticioso (não era notícia, portanto), merece agora honras de abertura dos telejornais. Não é que a previsão geofísica tenha desaparecido como programa. O boletim meteorológico continua com o seu espaço próprio e prudentemente científico. Mas agora é bem outra coisa. Os 10 ou 15 minutos de conjecturas geofísicas para o dia de amanhã, ou para daqui a 15 dias, que os telejornais integram, inserem-se na mesma lógica de prenúncio de desgraça. A catástrofe perdeu a sua natureza imprevista e humanamente trágica. Agora, aguardamo-la ansiosamente, com os olhos colados à televisão, ou numa sala de cinema perto de nós. Para glosar um spot publicitário que pegou de estaca: o futuro já não é o que era.
De tudo isto, o discurso político soube tirar as devidas lições. Se nada for feito, a Segurança Social, no prazo de 10, talvez 20, na melhor das hipóteses, 25 anos, entrará em bancarrota. A viabilidade do Estado e, por metonímia, a viabilidade do país, está seriamente ameaçada, se as contas públicas não forem controladas e se o trabalho não for racionalizado, isto é, contido nos seus custos.
São conhecidas as consequências da influenza. Nas pandemias e no inflar nos espíritos da fluência climatórica (e do seu contraponto: a nefasta interferência humana no clima), anuncia-se a libertação dos demónios, que o Inferno reúne em si. À letra: um pandemónio. A amplificação do terror pede argumentos à altura: ad terrorem. Isto é: dado um caso, seguir-se-á, inevitavelmente, consequências de tal modo terríficas, que todo o pensamento fica tolhido. A demissão crítica funciona, em primeiro lugar, sobre a ausência de averiguação objectiva e rigorosa da existência do «caso». Se a incontinência do deficit ameaça a sobrevivência do Estado Social e põe em risco a viabilidade do país, para que o deficit seja anulado, o Estado tem que se livrar das suas funções sociais. Ora, o salto argumentativo, a ser efectivamente transposto para a realidade, comporta riscos de convulsão social.
Na fidelidade aos princípios pragmáticos (que «desideologicamente» suportam tal intenção), prediz-se, desde já, que a Diplomacia, as Polícias, as Forças Armadas e a Justiça continuarão dentro das funções do Estado. Que o mesmo é dizer: na política externa, a manutenção dos «fins humanitários»; na política doméstica, a manutenção da ordem pública.
Para grandes males, grandes remédios.
in «Crónicas», Incomunidade Edições, Lisboa, 2008, p. 41 e sgs.
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